terça-feira, 1 de junho de 2010

BEATRIZ - PARTE I



Os olhos de Beatriz me atraíam. Eles desnudavam sua alma, sua personalidade de mulher casada de falso recato que o resto do corpo tentava em vão esconder. Não foi difícil descobrir isso ao conhecê-la no supermercado. Quando olhei para ela, de velho os seus olhos estavam em cima de mim. Ao perceber minha atenção, num movimento rápido, ela desviou-os e disfarçou seu interesse procurando preços de produtos na prateleira.


Abafei um sorriso de contentamento e puxei o carrinho para perto dela. A conversa não demorou.

Deflagrado o diálogo, ela perguntou:

— E sua esposa, não veio?

— Pois é, ela está viajando. Foi a um congresso. A casa está por minha conta.

— Não tem filhos?

Sabia que sondava, direta e rapidamente, mais um candidato a amante. Mulheres casadas preferem os que têm poucos embaraços e mais tempo livre.

—Sim, tenho. Mas já bateram asas, voaram.

—Só os dois em casa então?

—Isso mesmo. E você?

Ela estendeu a mão esquerda, mostrando os dedos longos e finos. Unhas bem cuidadas, pintadas de vermelho forte. Tratadas quase diariamente em manicure, coisa de mulher com muito tempo ocioso. No dedo anular brilhava uma grossa aliança. Não vacilei um só segundo: prendia-a entre a minha, sentindo a maciez da pele bronzeada. Ela não opôs resistência, deixou que a retivesse, como que gostando de ter encontrado um apoio para descansá-la. Fiz leve pressão em sua palma alerta a qualquer alteração nos seus olhos que denunciasse pânico ou desagrado com o contato intempestivo. Nada disso. Apenas apertou-os levemente, o que para mim podia exprimir duas coisas: atenção e análise ao que eu fazia, para ver o tamanho de minha ousadia, ou prazer ao ser tocada assim em lugar público.

Ainda sem largar sua mão, fiz o pedido.

— E o seu telefone, pode me dar?

Ela sorriu.

— Se largar a minha mão, dou-lhe um cartão.

Foi imediatamente obedecida, tendo eu inclinado levemente a cabeça e afastado os braços do corpo num sinal de escusas.

Rindo de minhas mímicas, enquanto olhava em volta com cautela, abriu a bolsa, sacou a outra de mão de dentro dela, vasculhou-a até encontrar o pequeno pedaço de papel — que prendeu entre os dedos indicador e médio —, entregando-me com olhos cravados nos meus. Sem ler, elevei-o preso entre os dedos à lateral da testa numa reverência de despedida. Ela se afastou sem desarmar o sorriso, misturando-se aos muitos clientes.

Dois dias depois, quase havia esquecido Beatriz. Vasculhando papéis na carteira de bolso, dei com o papelzinho amarelo. Era o seu cartão de visitas. Eram tantos os cartões que recebia, tantas as mulheres com quem tinha contato, que uma a mais ou a menos pouca diferença fazia. Ou melhor, obrigava-me a estabelecer uma relação, definindo prioridades. Umas pela beleza, outras pela suspeita de que fossem ardentes à cama, outras ainda pela certeza de que pela primeira vez trairiam o marido. Beatriz não se enquadrava em nenhuma dessas categorias, não sendo portanto caso de urgência. Por isso, o esquecimento de seu cartão entre os muitos que recebia diariamente. A surpresa foi grande quando constatei que o cartão era de seu marido, advogado renomado que eu conhecia das entrevistas na TV e nos jornais.

“Bandida”, expressei, o riso sobrepondo-se à raiva. “Te pego”, asseverei, imediatamente enquadrando-a numa recém-criada categoria, onde ela reinaria absoluta: a das mulheres que tentam me ludibriar.




Nem Dom Juan nem Casanova

2 comentários:

  1. Obrigado por te adicionares :)

    Li apenas na diagonal, por isso não vou dizer nada (para já) acerca do texto.
    Mas voltarei para o fazer.

    :)

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  2. Agradecido, amigo, pela presença. Aguardo sua volta. Obrigado.

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