quarta-feira, 9 de junho de 2010

BEATRIZ - FIM

Com atraso de um dia, eis a conclusão!


A verdade é que nenhuma mulher me dera tanto trabalho quanto Beatriz. Fiquei três horas esperando à sombra de uma árvore frondosa, ao lado do posto, inquieto, temendo que os olhares desconfiados dos frentistas se transformassem em denúncia à polícia por achar que um marginal planejava assaltá-lo; estava apenas à espera dos comparsas, diriam. A atitude suspeita em que me encontrava, pressuroso, um olho na pista, onde os carros passavam velozes, e o outro nas dependências do posto, como a bisbilhotar se os comparsas — tão efetivos na arte da dissimulação — não haviam chegado sem que até eu percebesse, dava margem a tal engano. Por isso saí dali ao cabo de uma longa espera, o orgulho ferido, remoendo sentenças que classificavam Beatriz entre as mais ínfimas personalidades do mundo da prostituição.


Por sorte encontrei-a na primeira tentativa que fiz no supermercado. Era lá o único lugar em que podia procurá-la. Se quisesse, podia evitar-me facilmente não indo mais lá e eu ficaria sem ter como achá-la. Mas parecia propósito não querer me evitar. Estava só, ainda bem. Um vestido que ia aos joelhos livrava-a da classe das mulheres de péssima reputação a olhos que se prendessem à análise exclusiva da vestimenta. Eu, afeito a suas tretas, ia direto ao olhar para uma leitura da alma. Mordi a língua, irado, gosto de bílis na boca, ao ver suas pupilas brilhando de felicidade. Era um brilho que me ofuscava, que me fazia quase perder a cabeça, e denunciava, sem necessidade de experiência ou dotes sobrenaturais de adivinho, que fora tudo proposital, uma armação. Estampava nos olhos — eu não estava louco — o prazer com o objetivo alcançado. E a raiva com que a abordei só fez calibrar para cima o seu prazer. Seus olhos pareciam dizer: “você voltou, meu cachorrinho! Vem, lambe os meus pés, é uma ordem!”

—Por que fez isso?! — explodi.

Cândida, com a mais pura naturalidade, como se aquilo fosse comum na sua vida, desconversou que era uma mulher casada, que tinha compromissos com o marido, que este sem aviso prévio levou-a a um compromisso social na Ordem dos Advogados e, sem ter como entrar em contato comigo desmarcando, ficou pensando que a minha reação seria justo esta.

Arrematou:

— Desculpa, meu bem — e fez um biquinho.

— E como ficamos?

— Conhece o Clube de Engenharia? — e sem dar tempo para eu abrir a boca: — Pois bem, me espere na rua detrás, pertinho da sorveteria...

— Que dia?... — atropelei-a

— Calma — ela atalhou, fria, com um irritante controle em quase tudo: nos gestos, na fala tranquila, na respiração pausada. Só não tinha domínio sobre os olhos, incapazes de disfarçar o sádico prazer que a deixava em ebulição por dentro.

Seria no dia seguinte, acertou. E no meio da tarde. Depois de dar as ordens, livrou-se de mim com a pressa de um transeunte que afasta a incômoda presença de um pedinte de rua.

Ah! ela me paga, jurei, se tentar novamente me dar o bolo. E voltei para casa remoendo mil ardis para prendê-la em minhas malhas. Eu, um homem experiente, sobejamente conhecedor de todos os truques femininos de sedução e negaça, não iria agora sofrer nas mãos de uma dondoca que parecia indecisa em trair o marido. Estaria ficando velho? Seria já hora de aposentar-me nesse perigoso jogo? Um dos meus maiores orgulhos era justamente o fato de minhas contas matemáticas nunca me traírem: a cada abordagem correspondia um sucesso. Por que agora o fracasso me ameaçava?

Como a maior arma do conquistador é a perseverança fui ao encontro. Parei o carro diante da sorveteria bem antes da hora combinada, desci, pedi um sorvete e esperei. A ruazinha quase não tinha movimento, era ideal para esses encontros: discrição e controle de todos os movimentos. Seria ela também hábil no jogo da sedução?, assaltou-me uma dúvida. Uma amadora não teria tão vasta margem de manobra. E se agora estivesse se rindo de mim, preparando-me um novo bolo?

Na hora aprazada um carro entrou na rua, dobrando a esquina dos fundos do Clube de Engenharia. Chegou lento, vidros fechados, ar-condicionado ligado na tarde quente. Larguei o sorvete para melhor conferir se era Beatriz. Não teria precisado tanto, pois o carro quase parou no meio da rua, o vidro desceu lentamente, deixando à mostra o seu sorriso. Na hora não aferi se era de mofa ou contentamento. Fiz menção de descer a calçada, mas ela arrancou. Pensei que fosse estacionar adiante e paralisei os movimentos esperando sua definição. Inacreditável, viera só zombar de minha cara. Com o meio-fio liberado, a rua sem outro carro que o meu, ela seguia lento adiante. Ia embora, a cadela. Já assim a mencionava na explosão de impropérios que chamou a atenção do sorveteiro.

Mas a sorte conspirava a meu favor. E digo já por quê. Bem adiante ela estacionou o carro, desceu, deu a volta e olhou atrás na lateral direita. Eu observava mudo e paralisado. Mais um de seus truques? Era assim que atraía o interesse de um potencial amante? Eu permaneci estático. Se não era uma mulher complicada, como nunca vira antes, usava estratégias heterodoxas no jogo da sedução que começavam a atrair-me pela vontade de aprender, reciclar e tornar maior minha capacidade sedutora. Logo Beatriz deixou de observar o carro para acenar em meu rumo, chamando-me. Não perdi tempo, paguei o sorvete, entrei no carro e arranquei. Ela estava com o pneu traseiro do carro furado, era isso! Santo prego que o furara. Por isso parou, nada de estratégias mirabolantes. Era já a minha autoestima que murchava para duvidar assim de meus predicados e superestimar suas táticas. O que não obra num conquistador empedernido o primeiro empecilho. Achava que minhas estratégias estivessem ultrapassadas, que a idade não só derrui o corpo como as virtudes do ser humano. Parei as excogitações antes que ela sumisse de minha frente.

— Que azar, o pneu está furado — disse quando me pus a seu lado. — Você troca para mim?

— Entra no meu carro, vamos buscar o borracheiro. Não quero estar suado no motel.

Ao ouvir a palavra motel, ela estacou o corpo; mas sem opção, entrou.

Olhei-a a meu lado, estava linda, desamparada. Não desconfiava o que eu faria. No final da rua tinha uma borracharia e passei por ela como uma flecha. Ela protestou.

— Ali, ali, você passou a borracharia.

— Sei, eu vi.

— O que você está planejando? — virou-se para mim com olhar assustado.

— O que eu disse há pouco: vamos ao motel.

Ela cresceu os olhos nas órbitas, desfigurando a placidez do rosto. Protestou, não podia, disse. E por que não? quis saber. Por que nunca saí com outro homem que não fosse meu marido. Conta outra, sorri sem dar o mínimo crédito. Juro, juro!, e pôs as mãos juntas em súplica.

Eu me deliciava vendo aquela mulher fria, cheia de cálculos e métodos para ludibriar um homem, quase chorar como uma criancinha. Seria também parte do jogo?

— Você faz assim com todos?

Ela fuzilou-me com um olhar de raiva que pareceu verdadeiro.

Desculpei-me.

— Pois bem, se nunca saiu, vai sair hoje. Há primeira vez para tudo. E se gostar, pode repetir — sorri casuisticamente. — A única coisa que não admite repetição é a morte.

Enquanto eu avançava pela rua, aos poucos seus rogos foram perdendo força, permitindo que voz e olhos se ajustassem no mesmo compasso excitado.

Balbuciou uma confissão, as palavras tensas, jogadas para fora como pedras em vidraça:

— Você é maluco — percebi um acento de prazer em sua voz. Ela continuou, após um intervalo em que parecia contabilizar números: — Sabe que você é o décimo-sétimo homem com quem brinco assim?

Pegou-me de surpresa com a revelação. Jura?, perguntei depois de um momento abobalhado. Ela, sacudindo a cabeça afirmativamente como uma criança que confessa uma traquinagem, sorriu.

— Mesmo.

— Poxa, se levou todos para a cama, quando ia afinal comigo, pois hoje está indo pelo acidente com o pneu.

— Você não entendeu — disse afetando modéstia, o que me deixou confuso —, eu só brincava com eles. Você é o primeiro que me leva para a cama. Não viu o meu nervosismo há pouco?

—É realmente de encabular — foi tudo que consegui dizer pois ainda não digerira a informação.


Quando chegamos ao motel, Beatriz se revelou outra mulher, segura e decidida. Esqueceu qualquer recato. Fez um magnífico strip-tease como prato de entrada, vigiando com o olhar o tamanho crescente de minha excitação entre as coxas. Ao perceber que estava no ponto, sem qualquer chamamento meu, jogou longe o extravagante escarpim pink, última lembrança do vestuário, para me cavalgar. Enquanto rebolava para agasalhar minha pica na xoxota orvalhada, sulcava meu peito com unhas ferinas.

Com tanta desenvoltura na cama, achei impossível acreditar que fui o único ungido dos dezessete.

 
Nem Dom Juan nem Casanova

terça-feira, 8 de junho de 2010

VOLTO HOJE

Amigos, ainda hoje posto a conclusão da história de BEATRIZ. É que estive fazendo exames médicos nestes últimos dias e a coisa emperrou. Mas os concluí ontem à noite e estou liberado. Antes tinha um vício, o cigarro; como o ser humano dificilmente livra-se por completo dos vícios, quero voltar logo a este, o que preenche meus dias no Ocaso.


Nem Dom Juan nem Casanova

quinta-feira, 3 de junho de 2010

BEATRIZ - PARTE II



Movido por um sentimento que oscilava entre o despeito e a excitação, pus em prática meu dotes de detetive amador atrás de Beatriz. Onde encontrá-la senão no supermercado? Seria de pouco siso ir ao escritório do marido pedir informação sobre ela. Talvez um homem inexperiente, ou possesso, cometesse tal desatino; eu não. Mesmo depois da volta de minha esposa do congresso médico, fiz questão de retornar às compras. Não quis sequer que me acompanhasse. Ela comemorou minha decisão como uma vitória. Estaria definitivamente me tornando um homem afeito às coisas domésticas, ela inclusa? A resposta foi uma careta que, no estado beatífico em que ela se encontrava, interpretou como um sim. Ainda que eu chorasse, veria nisso um sim.

Nas três primeiras vezes nem rastro de Beatriz. Ficava horas no supermercado, zanzando nos corredores, atento a todas as mulheres que passavam. Depois conto sobre outros romances que surgiram enquanto a procurava. Estava quase desistindo quando na quarta vez ela apareceu. Mas, puta merda!, acompanhada do marido. Não sabia se a companhia dele era usual, pois só a tinha visto uma única vez, e sozinha. Botou em mim os mesmos olhos dissimulados que suplicavam que fosse possuída e passou no corredor apertado se esfregando em meu corpo. Voltou, olhou para trás, enquanto o marido aguardava desligado do mundo, talvez esmiuçando mentalmente seus processos; uma vez mais disfarçou procurar preços na prateleira. Era a rainha da dissimulação, apenas os seus olhos não conseguiam mentir. Se os fechasse, era a mais casta de todas as mulheres. Mas iria puder fisgar seus amantes de olhos fechados? Impossível.

Segui-a por vários corredores. Ela parava, eu também. Quando voltava o rosto para me ver, tinha o mesmo sorriso mordaz nos lábios e o irritante olhar duro e dominador, que parecia gritar uma ordem: “vem meu cachorrinho, vem!” Excitava-se, não resta dúvida, de sentir-se desejada na presença do marido. E ainda mais de sentir-se flertando com outro homem na sua presença sem que ele percebesse. Provável que já estivesse com a xoxota molhadinha, desejando pica.

Depois de muitas esquivas, resolveu permitir a minha abordagem. Disse com voz melosa ao marido:

— Benzinho, vá para o caixa que ainda vou pegar uns xampus que estão faltando.

Ele foi para um lado e ela para outro. Eu atrás dela, empurrando meu carrinho ainda vazio, tamanha era a minha concentração. Lá pelo terceiro corredor, de onde ele não mais podia nos ver, ela cessou os passos elegantes à espera.

Eu soltei os cachorros, ofegante.

— Você é uma sacana...

Antes que eu completasse a frase, elegantemente, pedindo que abaixasse o tom porque estávamos num lugar com muita gente, ela afetou ignorância.

— O que houve, esperei e você não ligou.

—Faz de conta, né?! Você me deu um cartão de seu marido. Queria que ligasse para ele e o chamasse de benzinho? — disse com rispidez e deboche.

Ela pareceu gostar de minha pegada. Derramou um olhar libidinoso, que escorria pelos cantos dos olhos, como o das putas que encenam prazer numa brutal penetração.

— Oh, amor! Desculpa, deve ter sido a pressa. Sabe como é, tanta gente na hora, fiquei nervosa.

Antes que eu apontasse uma solução para o mal entendido, ela antecipou-se propondo uma saída.

— Que tal um encontro na saída da cidade, naquele posto verde e amarelo?

Mas era muito longe, eu disse. Não poderia ser mais perto? A sua negativa de cabeça não deixava opção, ou era aquilo ou nada.

E para apressar-me, ameaçou:

— Responda logo, o meu marido pode voltar pela minha demora.

Combinei dia e horário e vi afastar-se com o mais casto dos andares. Pelas costas era uma irrepreensível dama que só o olhar denunciava as habilidades no jogo da sedução. Voltei para casa com a sensação de uma vitória pirrônica, ou melhor, de ter sido novamente levado no bico.


Nem Dom Juan nem Casanova

terça-feira, 1 de junho de 2010

BEATRIZ - PARTE I



Os olhos de Beatriz me atraíam. Eles desnudavam sua alma, sua personalidade de mulher casada de falso recato que o resto do corpo tentava em vão esconder. Não foi difícil descobrir isso ao conhecê-la no supermercado. Quando olhei para ela, de velho os seus olhos estavam em cima de mim. Ao perceber minha atenção, num movimento rápido, ela desviou-os e disfarçou seu interesse procurando preços de produtos na prateleira.


Abafei um sorriso de contentamento e puxei o carrinho para perto dela. A conversa não demorou.

Deflagrado o diálogo, ela perguntou:

— E sua esposa, não veio?

— Pois é, ela está viajando. Foi a um congresso. A casa está por minha conta.

— Não tem filhos?

Sabia que sondava, direta e rapidamente, mais um candidato a amante. Mulheres casadas preferem os que têm poucos embaraços e mais tempo livre.

—Sim, tenho. Mas já bateram asas, voaram.

—Só os dois em casa então?

—Isso mesmo. E você?

Ela estendeu a mão esquerda, mostrando os dedos longos e finos. Unhas bem cuidadas, pintadas de vermelho forte. Tratadas quase diariamente em manicure, coisa de mulher com muito tempo ocioso. No dedo anular brilhava uma grossa aliança. Não vacilei um só segundo: prendia-a entre a minha, sentindo a maciez da pele bronzeada. Ela não opôs resistência, deixou que a retivesse, como que gostando de ter encontrado um apoio para descansá-la. Fiz leve pressão em sua palma alerta a qualquer alteração nos seus olhos que denunciasse pânico ou desagrado com o contato intempestivo. Nada disso. Apenas apertou-os levemente, o que para mim podia exprimir duas coisas: atenção e análise ao que eu fazia, para ver o tamanho de minha ousadia, ou prazer ao ser tocada assim em lugar público.

Ainda sem largar sua mão, fiz o pedido.

— E o seu telefone, pode me dar?

Ela sorriu.

— Se largar a minha mão, dou-lhe um cartão.

Foi imediatamente obedecida, tendo eu inclinado levemente a cabeça e afastado os braços do corpo num sinal de escusas.

Rindo de minhas mímicas, enquanto olhava em volta com cautela, abriu a bolsa, sacou a outra de mão de dentro dela, vasculhou-a até encontrar o pequeno pedaço de papel — que prendeu entre os dedos indicador e médio —, entregando-me com olhos cravados nos meus. Sem ler, elevei-o preso entre os dedos à lateral da testa numa reverência de despedida. Ela se afastou sem desarmar o sorriso, misturando-se aos muitos clientes.

Dois dias depois, quase havia esquecido Beatriz. Vasculhando papéis na carteira de bolso, dei com o papelzinho amarelo. Era o seu cartão de visitas. Eram tantos os cartões que recebia, tantas as mulheres com quem tinha contato, que uma a mais ou a menos pouca diferença fazia. Ou melhor, obrigava-me a estabelecer uma relação, definindo prioridades. Umas pela beleza, outras pela suspeita de que fossem ardentes à cama, outras ainda pela certeza de que pela primeira vez trairiam o marido. Beatriz não se enquadrava em nenhuma dessas categorias, não sendo portanto caso de urgência. Por isso, o esquecimento de seu cartão entre os muitos que recebia diariamente. A surpresa foi grande quando constatei que o cartão era de seu marido, advogado renomado que eu conhecia das entrevistas na TV e nos jornais.

“Bandida”, expressei, o riso sobrepondo-se à raiva. “Te pego”, asseverei, imediatamente enquadrando-a numa recém-criada categoria, onde ela reinaria absoluta: a das mulheres que tentam me ludibriar.




Nem Dom Juan nem Casanova